quinta-feira, maio 04, 2006

QUANDO O PUNK RESSUSCITOU PARA MORRER GLORIOSO

Sexta-feira.
(tudo o que dá pra fazer é lembrar. A gente nunca teve um CBGB mas o Vox deu conta)
Um pequeno cachorro preto, recém saído do pet-shop, foi atropelado na esquina das ruas Saldanha Marinho com a rua Ébano Pereira. Seu dono não estava por perto. Márcia Hilly foi quem primeiro suspeitou da coleira com tachas prateadas, mas foi Paulo Kristal quem leu o nome e se emocionou.
- A gente precisa enterrar o coitadinho.
(tem de ser sob o meu ponto de vista. Tudo o que você sabe do Vox sou eu que conto)
Nestes dias de inverno a noite cai antes de soar o badalo das seis. Por ironia divina,
(não inventa demais)
a noite desaba e as estrelas acedem. Feito mariposas coroadas de mercúrio procurando a luz, a fila desordenada começa a se formar. Mais cedo que o normal, os convivas estacionam seus carros, posicionam seus coturnos, borram os olhos marcados de lápis preto. Mais cedo que de costume,
(tem gente que acredita que)
as lojas ao redor fecham as portas e a música das pick ups ecoam nas paredes da secretaria de cultura. Duas imensas caixas de som pretas, voltadas para o céu, anunciam que algo de grave se deu e é preciso que os portões do céu se abram.
- Talvez devessem estar voltadas para baixo.
- Mas aí ninguém ia conseguir ouvir.
Train in Vain
E continuam a vir,
(foi tanta gente. Como nos tempos do Amaryli’s)
atraídos pelo som de mil baixos e milhões de complicações; convocados por meio das micro-ondas de celulares e das mil teclas de Orkuts e MSNs; avisados pelo sentimento de tristeza que fez quedar das árvores algo além das folhas outonais tardias. Como vítimas da tempestade dos últimos dias, pardais e sábias fulminados pela infinita fragrância de desespero e desassossego. Um sentimento que perfuma o ar,
(lembrando tudo parece engraçado, mas não foi)
misturando acentos de tabaco ao cítrico de um rio de lágrimas.
Give 'em Enough Rope
Gelson senta-se no meio-fio e bebe uma dose de vodka. Não conversa, apenas toca o líquido transparente nos lábios e deixa que seja absorvido. Ao seu redor, duas centenas de pessoas olham umas para as outras. Reminiscências de um tempo que parecia que algo aconteceria. Algo grandioso.
- Eu sinto saudades de tanta coisa que nem sei dizer.
- Eu amava a Debbie Harry. Aquele jeitão de modelo e uma cara de quem não sabia o que estava acontecendo.
- Nunca entendi o New York Dolls. Os caras vestidos de
organdi amarelo sobre forro de cetim rosa nunca ficou bem em homens de pernas peludas.
Joe Mauricião Ramone coberto de couro e cinta-liga procura um cinzeiro. Dado Strummer reclama que o coturno aperta no calcanhar porque ganhou alguns quilos em churrascarias rodízio de beira de estrada. Pedro Sylvain Sylvain carrega Lúcio no colo, pedindo clemência a Batgirl, furiosa pois tudo o que acontece acontece sem dever acontecer, apenas por ser assim.
- Alguém telefonou para o dono?
- Acho que a Márcia fez isso.
Cinthia Acin Songs for Drella desculpa-se
- Vim direto do trabalho, nem deu tempo de me produzir.
E com olhar de quem parece que algo aconteceu de mais grave e não percebeu, diz que
- trouxe alguns quadrinho do Osama Tezuka para quem quiser ler.
(o tempo, sabe, passa de um jeito que você nunca vai entender porque fica copiando a vida dos outros no papel que nem é seu. E pior, na tela que você nunca vai saber de quem)
Duas caixas de Heineken na calçada e milhares de pontas de Marlboro se vão em uma piscar de sinal. Do vermelho para o verde e novamente para o vermelho. Dustin Buddy Holly tira o suor do rosto e termina de cavar o buraco. Paulo Kristal elogia o cuidado que teve para não ferir as raízes da árvore.
- Seria crime ecológico. Sem fiança.
- Você não me avisou.
- Não. Mas a loira gostou.
(tem gente que vai só pra dizer que foi, como se o Vox fosse uma casa histórica. Tipo: eu sentei na cama que o George Washington perdeu a virginidade)
O corpo vem embrulhado em papel celofane. Never mind the bollocks à toda. Tremem os vidros dos automóveis. Um pequeno congestionamento provocado por gente que não entende.
- Vão pra casa, bando de desocupados!
China todo de branco, trêmulo, usando de todo o seu esforço que a tristeza permite.
- Não têm coisa melhor pra fazer?
Poucos conseguem conter as lágrimas.
- Vou chamar a polícia!
- Cala a boca ou te encho de porrada.
Batgirl poga a porta do opala dourado e coloca o motorista de sobreaviso.
- Você não entende que Sid Vicious morreu?
- Vai à
Duas centenas de pessoas socam, pulam, empurram, chacoalham, mordem, gospem, xingam, apertam, até que o automóvel jaz com as rodas para o alto.
- E não se esqueça disso!
Entre gritos e comemorações, China enterra o poodle toy que ganhou de sua tia e do qual tinha vergonha por ser um poodle toy mas que, no último momento, percebeu que não importava. Sob aqueles pompons e fitinhas, Sid Vicious sempre foi o mais punk de todos.
- Lembre-se Do it yourself.
Gelson derrama na tumba a vodka e corre dar uma cabeçada na porta do opala dourado. O sangue espirra como um chafariz de final de ano, espalhando gotas brilhantes no ar.
- É. A gente vai ficando velho e alguma coisa muda.