sexta-feira, maio 19, 2006

Aos boleros, crianças!

Minha vida está uma merda. E quando a vida está uma merda, a gente fica mais sábio. Olha em volta e pensa com alguma profundidade nas coisas (claro, até onde as dores de cotovelo permitem). Virei uma budista nata, daquelas que sentem na pele a premissa-mor da religião: viemos ao mundo para sofrer. Sagae me explicou a idéia toda de um modo que eu pudesse compreender. Diz ele que quando a gente está feliz, tornamos nosso mundo pequenininho; estamos tão felizes que só aquilo que nos faz feliz nos basta. Limitados àquilo, saca? E quando sofremos, desesperamos, começamos a procurar um horizonte para as coisas. Quando tudo dá errado, é como se mudássemos de uma tele-objetiva para uma grande angular. È aqui que percebemos o mundo como ele é de fato. As coisas boas e as ruins. Ficamos tolerantes com as cagadas dos outros, pensamos nas criancinhas morrendo de fome na Etiópia e vemos que aquilo sim é tragédia. Na verdade, perdoamos até os medíocres; pensamos que por trás daquele trabalho de merda, tem uma pessoa e sua história, suas amarguras, as dificuldades por que passou na vida e achamos que nem é tão ruim assim (é ruim, pero “tem emoção”).
Decidi mergulhar fundo no universo musical dos miseráveis, tentando me consolar. Ouvíamos aqui uma Nina Simone muito chique. É ótima, claro, como todas as divas do jazz americano.Mas, porra, falta aquele ar desgraçado, miserável mesmo. Ok, ok, sei que Billie se fodeu praca, mas foi com classe. Era uma diva, porra! Pra mim, precisa ser mais miserável que isso.
Caí nos boleros. Bah, eu ouvia meu pai todo animadinho no domingo de manhã cantarolando aquelas boleros, feliz da vida (esquisito, porque sempre achei que bolero não combina com alegria) e não percebia a graça que uma pessoa tão instruída e inteligente como ele podia achar naqueles dramalhões rasgados.
Hoje, eu entendo perfeitamente. Tanto que, enquanto escrevo, ouço no repeat, ad nauseum, La Barca, Vete de Mi, Contigo en la Distancia. Todos esses aí, os clássicos. Só eles refletem a natureza doce e romântica da tragédia. Uma tragédia que a gente entende, que fala a nossa língua (tá, não fala a nossa língua, mas a gente entende. Ou vai dizer que você entende os tais mantras budistas, em sânscrito, hindu, chinês?).
O bolero deveria ser adotado como oração aos miseráveis latinos. Nada de Piaff, Ella. Nem divas, no geral. Vamos aos caribenhos!
Fiquei pensando e entendi a tal história de que a desgraceira é uma ótima catalisadora da criatividade. Já reparou nos desgraçados dos caribenhos, o que eles produziram em arte? Gárcia Márquez, Llosa, Reynaldo Arenas, Ibrahim Ferrer, Roberto Cantoral, Bottero. Pô, tem muita gente boa e arte de alto nível ali.
Deve ser a tal mistura étnica. Eu tenho uma teoria: nesses lugares bacanas há muita miscigenação. Mas miscigenação mesmo. Branco, preto, amarelo, vermelho, cor-de-rosa com bolinha verde. Tudo. A gente se mistura e os genes recessivos vão sendo deixados para trás, apagados do nosso DNA, numa espécie de concurso genético. A lixarada vai indo embora e só ficam os fortes. Só pode ser isso. Uma gente que nunca vi mais fodida fazer coisas tão boas só pode ser o resultado de uma apuradíssima seleção genética. Como aqueles cachorros vira-latas que a gente vê na rua. Já viu um cachorro de raça ser tão descolado e esperto que nem eles? Eu nunca vi. Um lulu da pomerânia de rua jamais de la vie seria tão descolado quanto aqueles adoráveis cachorros amarelo com preto que a gente vê por aí, largados, sozinhos, tentando se virar, arrumar uma comida, uma namorada, tentando criar os filhos, se divertir...
Soa familiar? Pois sim. Nós latinos somos uma somatória surreal de fodidos. E por isso nos tornamos tolerantes e com um horizonte imenso. Somos sábios até, capazes de achar graça na desgraça e construir assim uma cultura rica e interessante, sem precisar dos budistas, que não entendem nossa língua.
Namastê pra vocês.