sexta-feira, agosto 25, 2006

Trabalho por amor

Avante, filha-da-puta! Avante que um passo a menos é uma bala na cabeça. Avança de uma vez que o barranco precisa de pressa. Se você for devagar no início, não chega ao final. E você quer chegar ao final, não? Você quer satisfazer a mim, que te impulsiona feito um carrasco na direção da guilhotina, feito o pastor ao teu lado, rezando o salmo 28, compondo a figura de sonhos que tantas vezes você sonhou deitado em sua cela sem grades. É, você não devia ter tentado o que não podia conseguir. Fracassado de merda! Olha o mato ao seu redor e me diz se era desse modo que você imaginava o fim. Está vendo seus sapatos, o modo como as solas engrossam com o barro e a merda de animais tanto que se você realmente soubesse teria desistido faz anos de comer carne. Sim, eu sei que você tentou ser vegetariano, não tanto em respeito às almas bovinas, mas principalmente pelo prezado corpo que logo, em breve, em brevíssimo - cala a boca que não me interessa que você não queira ouvir - onde eu estava? Ah, em brevíssimo tempo será uma parte a mais desta natureza exuberante. Afinal, não era isso que você queria. Quando você orava de palmas juntas, pedindo para conquistar a tal unicidade. Ser um com o todo e não mais sofrer , e não mais ser derrotado pois você, naquele momento, seria o universo, e não esse personagem mesquinho e sem capacidade que não seja fracassar naquele grande emprendimento? Vamos, anda de uma vez que ainda falta, não muito, mas falta. Vamos que as cordas não atrapalham tanto assim. Eu sei porque já fiz este caminho, mais de uma vez. Não, eu não sou o diabo, muito menos o espírito de natal (se pelo menos natal fosse). O que eu entendo desta vida e posso te dizer, agora que você pode parar... não quer parar? Olha, o caminho inteiro você reclamou da trilha e agora quer continuar? Claro, sei que está com medo de se ajoelhar e eu dar cabo de tua existência mesquinha. Olha, vou te dar uma chance. Eu vou sentar naquela pedra ali e vou acender um cigarro. Quer um? Causa câncer, você sabe, não sabe? Pois bem, aqui está. Pega e traga devagar porque odeio gente que tosse quando fuma. Pára de tossir, você não ouviu? Todos os dias, quando eu era criança, eu assistia a sessão da tarde e ficava esperando que fosse um filme com cachorros. Lassie, Rin-tin-tin, essas coisas. Mas o melhor era um que eu não lembro o título, com um bull-terrier miniatura. Muito esperto. Na época eu não sabia que era um cachorro tão caro. É, muito caro. Poucos criadores neste paisinho de merda. Eu sei, faz parte da vida. Senta, que é melhor. A árvore não vai cair. Senta e descansa as pernas. Eu sei que é foda. Já te disse, eu já cumpri o seu papel. Como eu fiz pra me livrar? Não vou te contar que você não vai acreditar. Tudo bem, eu conto. Eu convenci meu guia de que era mais vantajoso me ter amigo do que morto. Como eu fiz isso? Simples, encostei meu peito na arma e falei que daquele jeito ele estaria perdendo a grande oportunidade da vida. E falei da merda do meu sócio, que tinha contratado ele. E falei da merda da minha mulher, que trapava com meu sócio. E falei das merdas dos meus filhos, que não sabiam de nada mas eram merda do mesmo jeito. E jurei, pedindo pra ele pegar minha carteira, que com o cartão do banco dava pra sacar uma boa grana e depois, quando o dia raiasse, a gente podia tirar o resto. Pelo menos 40 mil. Uma boa grana pra aquele tonto que, quando eu tive chance, enterrei na cova que depois coloquei mais dois pra fazer companhia. Meus filhos? Ainda vivos, mas não falo mais com eles. Nem eles comigo. Eles sabem que não é bom pra saúde. Ah, claro que eles sabem. Foi na frente deles que ajeitei as coisas. E fiz eles saberem pra que pudessem mentir pra mim. Amor de filho não é tão forte como o ódio e o medo. É um prazer falar, claro, por que a vida não se resume apenas aos momentos de ação. Aproveitar as boas lembranças faz parte do prazer de viver. Eu já disse isso? Não importa. Seu cartão e crédito? Pode me dar, assim como o cartão do banco. Fala a senha que eu anoto. Tudo bem, eu admito, foi sua mulher e o caseiro (ah, jardineiro), é foram eles que acertaram o serviço. Não sei se são amantes. Tem gente que é assim, fazer o quê? Tchau. Vou comprar um cachorro. Obrigado pelo quê? Ah, é verdade. Estava esquecendo. Adeus. E desculpa. Gostei de você mas eu sou profissional. E como passei pelos dois lados da moeda, sei que é melhor não enrolar. Se bem que enrolo. Pede pro papai do céu que o cachorreiro não tenha vendido o machinho pirata. Como eu disse (não disse?), trabalho por amor.