segunda-feira, agosto 28, 2006

Câncer

Domingo você gostaria de acordar tarde mas não acorda. Um desejo irreprimível de doce de abóbora com coco te faz saltar do cabideiro e escorrer até a sala e, de trás do aparelho de som, tira um pote cheio de parafusos. Olha com atenção o único parafuso provido de porca e lembra-se qual o motivo de querer acordar tarde: continuar o sonho molhado e marítimo que estava tendo dois dias atrás, sobre a escrivaninha da cozinha. Volta para a cama mas é tarde. Tarde para dormir, tarde para comer doce de abóbora com coco. Levanta-se e veste a bermuda florida e a camisa de seda azul cobalto. De chinelas vai para a feirinha do Largo da Ordem e, de café da manhã, toma café. Acende uma cigarrilha Dona Flor e senta-se no banco junto ao relógio das flores. Na terceira tragada lembra-se que deixou de fumar. Câncer, quem se importa? Quem além de seu médico que anunciou seis meses de vida e você fez que não era com você e, agora, contando os dias ímpares e pares, passaram sete meses e nada aconteceu. Nenhum dos sintomas apareceram e nem mesmo fez a quimioterapia. Volta ao cigarro e olha para aquela montanha lavada de pessoas subindo e descendo a feirinha, procurando incensos, bugigangas, antiquidades novidadeiras e, por um segundo, acha que tem tonturas. Levanta-se, respira fundo e morre. Acorda em sua cama, ao lado a mulher que nunca amou e aos sues pés o velho e fiel cachorro Brutus. Vai ao banheiro, faz xixi e acomoda-se no sofá da sala e liga a televisão no canal pornô. Meus deus, pensa, quantas vezes vai fazer isso até que finalmente seja verdade.