quinta-feira, junho 29, 2006

E agora, Mané? 3

Gerson é uma pessoa de qualidades intrínsecas. Quer dizer, não tem qualidades. O que não limita sua capacidade de me fazer rir. Semana passada, após um desafogo emocional com uma jovem babá bicentenária, Gerson voltou para casa e anunciou à Vilma que a tinha traído. Abriu a geladeira e tomou duas cervejas long neck e foi para a sala e ficou assistindo ao Jornal da Noite. Vilma, com a cara apertada como um nó górdio, recostou-se à porta e parecia pensar nas mil conseqüências que adviriam de suas próximas palavras. Gerson havia chegado quatro horas mais tarde que o normal; bebia cerveja antes de dormir, o que a deixava louca; estava com os pés calçados jogados sobre a mesa de centro art-decô, o que simplesmente era o mesmo que chamá-la de a maior prostituta da Babilônia. Algo estava errado. E o que queria dizer traído?
- Você está tramando alguma coisa. Pode ir falando.
Gerson arrotou e mudou pra um programa de entrevistas.
- Não me vem com traição e coisa e tal. Eu sei que é tudo mentira. O que foi que você aprontou?
Largando a televisão e Sílvio Santos com a cara esticada, Gerson coçou os grãos e disse quase derrubando os quadros da parede.
- Nunca mais tire meu travesseiro do meio das pernas!
Vilma ouviu espantada e começou a rir. Antes de irem pra cama, fez com que Gerson tomasse um Viagra para celebrar as alegrias do casamento longevo.
- E ficou nisso?
- Cara, me diz Gerson palitando os dentes e tirando uma tonelada de picanha mal passada, tem dias que me odeio por ser tão esperto.
Pergunto se bebemos mais uma cerveja ou partimos pro uísque.
- Vamos ao digestivo de cavalheiros. Garçom, duas doses de Jack, caprichadas!
Limpo a boca dos respingos de gordura e salada de brócolis (tenho pensado na saúde desde que Juvenal morreu de ataque cardíaco no quarto de motel ao lado).
- Eu estou com a Vilma por conveniência. Depois de dez anos não dá pra simplesmente ir saindo, como se nada tivesse acontecido.
- Ela gosta de você.
- Quando ela te disse isso?
- Quando?
Olho para Gerson e vejo que sua pergunta é inocente. Mudo de assunto.
- Ela ainda fala a noite?
- Depois que foi ao médico, melhorou. Pelamordedeus! Depois daquela madrugada dos infernos eu tive que reclamar. Como alguém pode aceitar como natural ser acordado pela mulher ao lado gritando "égua, vai égua preta!", e repetindo esse discurso socrático a cem decibéis por vez.
- Ela devia ir ao analista.
- Eu tive que ir ao gastro. De tanto rir estourou uma íngua na minha barriga. Fui advertido que, se tivesse outro acesso de riso igual, podia até ficar aleijado.
- Ainda bem que tudo se rsolveu.
- Ainda bem.
Erguemos um brinde e pedimos outra dose.
- Merda, reclamo, esqueci a escova de dentes.
- Sem problemas, quando fui vomitar liguei pros bombeiros e avisei que tem uma bomba escondida no subsolo. Eles vão, no mínimo, gastar a tarde procurando.
Decidimos visitar algumas amigas após a digestão, em memório do Juvenal.

Escalação da seleção brasileira

Ponha-se no meu lugar. Desde criança eu sofro. Nasci assim. Esta é a sina de todos que tempo por nome Parreira. Pra começar, é trepadeira. Pior para as mulheres, claro, mas, pros homens, não facilita. Sua irmã é uma uva. Motivo de brigas constantes, não fosse eu um tranquilo e pacato garoto do interior (covarde por natureza em se tratando de embates físicos, ou vocês acham que escolhi a profissão de treinador por acaso?). Ih, azedou a uva no pé. Nem dá flor, só frutinha. E por aí vai. Como podem perceber, minha vida de criança não foi fácil. Uma época de provações. Algo como os quarenta dias de Jesus no deserto; Buda sob a árvore pipal; o caminho de Meca a Medina para Maomé; o espaço para a família Robinson; Robinson para o passivo do Sexta-feira (mais um que devia ser treinador).
Mas, por condições da mãe Natureza, os anos se passaram e fui para a faculdade. Dela saí como professor de Educação Física (quem não sabe fazer, ensina). Um de meus primeiros empregos, graças a uma articulação de QI (quem indica), foi ser técnico na África. Com um triste Constelation da Pan Air, lá fui eu cruzar o Atlântico, com as pernas trêmulas de quem sempre manteve os pés no chão. Ao descer da aeronave barulhenta, encontrei um país miserável, com gente boa e clima escaldante. Me senti no Brasil, não fosse o excesso de negros (coisa que me acostumei sendo treinador de futebol, área na qual, como em boa parte dos esportes, as qualidades desse povo se mostram superiores). O que muito me incomodou enquanto ensinava os ganenses o beabá da bola foi ser preciso das explicações teóricas. Já que televisão não havia, era preciso ensinar por meio de desenhos e gesticulações. Nos primeiros meses, parecíamos mais um time de rúgbi sem a bola apropriada (coitados, como eu nem embaixada sei fazer, acharam que futebol se joga com as mãos). Foi preciso muito esforço de meu intérprete para que as idéias fossem postas em seus lugares (ainda hoje, como todos sabem, Gana tem tradição de bons goleiros, fato o que dou mérito a mim).
Quando voltei ao Brasil, foi para ser auxiliar técnico da famigerada geração da copa de 70. Foi glorioso. Fomos, farreamos, e f.... No mais, foram partidas intensas (não sei se disse que em Gana aprendi coisas que deixaram as mexicanas doidas). Posso dizer que, a copa do México me deu, além do mérito da vitória, assaduras e descamação no escroto.
Depois disso, minha vida foi uma roda-viva. Passei de time a time, sempre mantendo as boas relações tanto com João Havelange quanto com seus parentes. Onde quer que eu fosse, ou estivesse, enviava cartões postais, ligava, lembrava dos aniversários e, não raramente, conseguia modos de tornar o nome de meu mui amado guru brilhante. Admito que nem sempre fui um vencedor, mas sou conhecido pelo meu modo exigente e correto de me portar. Não sendo bom dos pés, sou excelente da cabeça. Tanto na estratégia como no planejamento de treino, acerquei-me de grandes talentos - gente boa e também próximo à grande família. Como nunca soube o que realmente é jogar, montei em meu mundo de Alice no país das maravilhas, um cenário que é o campo ideal, com os jogadores ideais e os resultados ideais (hoje, mudei. As exigências de minhas empresas de compra e venda de jogadores me impedem de ir para o ideal. Me tornei nietzcheano. Ás favas o super-homem. Façamos de meus meninos meninos de ouro).
Neste momento, frente a uma xícara de café alemão. Olho para o campo molhado de névoa e me pergunto quem deve entrar, quem deve sair. Como Napoleão antes de uma grande batalha, não sei qual será o resultado, mas guardo em mim a velha Alice, forjada na real capacidade de saber que o mundo se faz antes na imaginação. Deste modo, me desfaço das preocupações, perguntas de jornalistas, pressões dos torcedores, e apenas sigo os conselhos de um mago Branco, escalando os homes de meu interesse. Agora, sorvendo este café aguado, mais do que nunca tenho certeza que os resultados vão ser os que devem ser, e independente do que for, eu sairei vencedor. Pois, se no campo minhas pernas não respondem, fora dele, meu bolso compra um coelho maluco, um chapeleiro louco, milhões de rainhas de copas e um futuro decente e milionário para meus netos.
Rio por último e rio melhor. Quanto mais envelhecido, o vinho torna-se mais rico... até mesmo em sabores.