quarta-feira, setembro 20, 2006

lancelot e guinevere

Eu poderia te falar de como me ver sozinha no mundo sem pais nem filhos nem família nem ninguém teve um efeito devastador em minha vida mas prefiro te contar apenas de como essa súbita sensação me provocou um imenso e delicioso sentimento de liberdade e esta trouxe consigo uma enorme carga de responsabilidade e parece que não posso cometer erros nem desviar-me de meu curso então me escondo em minha lucidez, gosto de gente e suas histórias, gosto de viver nelas o caminho inseguro que não me permito tomar e quando em minha própria vida um súbito novo amor aparece ainda que com um certo receio e resistência não vejo outra opção senão dar-lhe atenção. Por isso me és tão caro: porque és incomum. Apaixonei-me por ti ou pela idéia que faço de ti ou terá sido por mim? Já não importa; o desequilíbrio químico, as descargas de endorfina adrenalina ocitocina que me provocas já são suficientes para tirar-me de meu mundo sisudo e cometer todos os erros de uma só vez se for necessário. Não vives mais nas madrugadas de tua cidade, vives em mim, vives em algum lugar entre tudo o que tento esconder e meus mais altos ideais heróicos: és Lady Guinevere e Sir Lancelot juntos e já não importa o que digas ou faças: és meu; posso colocar-te no trono imperial japonês ou na vala comum das vítimas da peste a depender de meus humores e já nem me causas ciúmes pois me tens inteira e tens de mim o que tenho de melhor: minha imaginação. E quando cometer teus erros erga a cabeça e lembres-te que em algum lugar há um mundo meu onde podes ser o que quiseres e sempre podes voltar atrás e consertar tudo e onde sempre é possível escolher diferente e fazer bem e melhor e não consigo pensar em nada mais sensual e mais romântico do que nós porque agora ainda que seja somente em mim, somos um só. E me basta.

segunda-feira, setembro 18, 2006

um baixista

Nunca entendi todo o foguetório em torno dos guitarristas mas concordo que eles acabam sempre assumindo o centro das atenções, que estão sempre a tocar cheios de pose, fazendo caras e bocas, procurando sempre alcançar as notas mais impossíveis, as combinações mais inusitadas, o ineditismo, a novidade. Dever ser esse mesmo o problema deles: o compromisso com a performance. Isso nunca dá certo.
Repare no baixista.
Ah! um baixista deve ser algo muito agradável de se ter sob os lençóis. Ele sempre é um cara discreto. O baixo fala pelo seu nome. É baixo. Quer coisa mais interessante do que um homem que não precisa gritar para se fazer ouvir e entender?
Baixo tem tudo a ver com o ritmo. Tem um não sei quê de forte, de resistente, constante. Aquele som grave e pulsante parece acompanhar o ritmo natural do corpo e parece assim não precisar fazer força alguma para nos colocar no mesmo ritmo dele. Acontece.
Ando imaginando um homem assim, um baixista. Ele certamente me dirá como devo me mover. Imagino um homem de mãos grandes e fortes, capaz de manter o ritmo por muito tempo e o melhor de tudo, capaz de manter minha ilusão de que fui eu quem o escolheu, mesmo estando eu aqui, a esperar sua próxima nota.