quinta-feira, maio 25, 2006

soundtrack

Se a vida fosse o filme trash que parecisa ser na semana passada em são paulo, e se eu pudesse escolher uma trilha sonora para ele, seria, sem dúvida Police and thieves com o Clash.


Police and thieves in the streets
Scaring the nation with their guns and ammunition
Police and thieves in the streets
Fighting the nation with their guns and ammunition

From Genesis to Revelation
The next generation will be hear me
And all the crowd comes in day by day
No one stop it in anyway
And all the peacemaker turn war officer
Hear what I say

Police, police, police and thieves
Here come, here come, here come
The station is bombed
Get out get out get out you people
If you don't wanna get blown up

frase do dia

Ontem eu estava pensando em hoje e me animei; hoje sei que não posso fazer o mesmo. Que grande possibilidade de engano perdi.

quarta-feira, maio 24, 2006

CODA, O TEATRO CONTEMPORÂNEO VALENDO A PENA

O Théâtre du Radeau tem sede em Le Mans. Quem gosta de corridas de automóveis ou de filmes de Steve McQueen já ouviu falar da cidade.
(domingo a noite fez frio. Tanto que me resfriei. Quarta pela manhã faz calor. Tanto que minha coriza é contínua. A sensação é de um iceberg derretendo dentro de minhas narinas)
A apresentação dura algo em torno de uma hora. Termina com um terço da platéia que lotava as arquibancadas tendo saído. O grupo restante aplaude de pé. Não que isso seja grande coisa, ser aplaudido de pé em Curitiba. Diferente do mito, quando o assunto é teatro e dança, o aplauso efusivo e entusiasmado, com as bundas oscilando acima dos assentos é comum. O caso é que nesta apresentação os aplausos são merecidos.
(tente escrever um texto com o líquido do próprio corpo tentando afoga-lo. É terrível. Se bem que se eu realmente tivesse um iceberg dentro do nariz seria pior. Milhares de pingüins de vezes pior)
O diretor é François Tanguy, um homem de mais de um metro e oitenta e rosto simpático, a não ser nos muitos momentos em que se perde em suas próprias elucubrações. Bebendo uma caipirinha no Café do Teatro, mantém o cenho cerrado por longos minutos enquanto Dominique fala sobre Vale-Tudo e das duas vezes em que teve o crânio rachado.
(se eu realmente estivesse em um dos Pólos, provavelmente meu nariz não escorreria. Realmente teria um iceberg nas minhas fossas nasais e morsas acasalando nos seios paranasais)
Laurance tem uma performance impressionante. Todos têm, mas Laurance possui qualidades que a diferenciam. Frode é muito bom, como todos os outros, com seu trabalho de voz unitonal. que beira a assepsia. Mas Laurance chama a atenção pela qualidade com que se move e conduz o texto. Em um movimento único vai da entrada em cena à saída como se fosse um rio desmoronando da nascente à foz no espaço de quinze minutos.
(Curitiba já foi mais fria. Hoje chega a ser banal o calor que nos obriga. Realmente, algo se perdeu. Talvez eu devesse agradecer pela não existência de pingüins, ou focas, ou ursos polares com suas grossas pelagens brancas. Talvez)
Cada um dos performers guarda qualidades. Dietrich até bem pouco tempo era arquiteto, na Alemanha. Um convite de François o fez mudar-se para Lê Mans. Não é um jovem. É um homem na roda de seus sessenta e mais alguns anos. Uma presença fortíssima em cena. A bengala que apóia seu corpo acometido por dores na coluna reforça detalhes. É velho, mas é jovem. Mudar é algo que chama coragem.
(terça-feira, após uma conversa com várias pessoas do meio artístico de Curitiba, deixamos o Porto Rebouças e vamos até o Café do Teatro. Eu de moto, a maioria de van, alguns de carona com Mônica. Já estou com meu iceberg nasal. Acelerar é um vento nórdico. Talvez devesse ir mais devagar. Mas é impossível)
O cenário é composto por imensas paredes móveis. Cada uma delas com acabamentos diferentes. Uma é madeira, outra é plástico, uma terceira é feita de alguma liga acrílica, outra tem revestimento de tecido, e por aí vai. Cada uma delas com graus diferentes de translucidez. Em movimento constante, cortando as linhas pelas quais circulam o som e a luz, reforçam a sensação de transitoriedade e falta de enredo. Pelo menos do enredo padrão, aquele com começo meio e fim, concatenado para alegrar a lógica mais tosca. No constante movimento da paisagem cênica emerge a harmonia do caos.
(o atendimento no Café poderia ser melhor. A comida demora e não está bem temperada. Muita gente, poderia ser objetado. Mas isso só piora a situação. Converso com François a Dominique sobre besteiras que tornam a vida palatável. François repete que não existe método, apenas uma busca constante. Trabalhar feito super-produção, com material pronto e que quase garante a alegria do público lhe parece imoral. Talvez. Assim como o vinho consumido em garrafas e taças, algo se esvazia pelo sabor raro. Algo se nubla pelo excesso de satisfação)
Certamente o texto tem sua lógica. São recortes de Kafka, Artaud, Holderlin, Gadda, Dante. São palavras que contam histórias fechadas em si, mas que transbordam significação para a cena. Se pelo menos fossem ditas em português valeriam outra coisa, mas ditas em francês e alemão, tornam-se opacas à maioria dos ouvidos. Se bem que François jura que isso não importa. E talvez eu seja obrigado a concordar.
(o público é hedonista e busca a própria satisfação. Egoísta, só enxerga a si mesmo e perde assim a oportunidade de enriquecer os sentidos com algo além daquilo que conhece. Satisfação garantida, é isso que a maioria pensa ser o certo. Reiventar os modos de se satisfazer é o que o Théâtre du Radeau propõe)
Mônica leva Dominique – outra Dominique, mulher, nossa amiga – para casa e depois deixa o pessoal no hotel Slaviero. Estou com sono e meu Iceberg avança mar afora, ameaçando Titanics e outras potestades. Amanhã tenho que escrever este texto. Hoje preciso dormir como ontem não o fiz a contento.

terça-feira, maio 23, 2006

NOITE DE CHUVA

(ou poderia começar assim, mostrando um cenário propício a climas e mistérios, anunciando uma aventura memorável)
Árvores altas demais ofuscam as luzes de mercúrios. Sirenes de polícia e ambulâncias obrigam os carros lentos a abrir caminho. Reclamações e xingamentos pelas janelas abertas. Cabelos molhados e um nervosismo que se prolonga desde que a chuva começou, duas semanas passadas. Vários bairros sofrem com as inundações. Bocas de lobo regurgitam o líquido marrom que segue para o escoadouro seguinte, também saturado.
(a televisão estaria presa em um suporte e, ao ser ligada, exerceria sua função hipnótica de confidente que apenas diz, não ouve)
Sirenes e chuva de granular formigas. A janela do restaurante repica o brilho vermelho em rápidas alternações de azul. Sorrindo abobado para o reflexo a destacar seu rosto, João balança a cabeça em um sim espasmódico
- Foram tiros. As sirenes confirmam. Ta vendo?!
e se dá conta da falta de atenção da namorada e bebe a cerveja e
- Vou ao banheiro.
Resmunga uma canção de Tim Maia enquanto passos caducos desencontram o chão.
- É muito idiota.
Andréia acompanha os sapatos de solas gastas de João, até desaparecem atrás da porta do banheiro.
- Nem sei porque continuo agüentando. Acho que está na hora de partir pra outra.
E passa a mão no ombro direito da amiga, segurando com a outra o copo de cerveja pela metade.
- Se eu fosse linda como você arranjaria um gato.

- Gente com menos de 50 e mais de 30 vive o dilema de não ter raízes. Vive o vazio. E digo isto não para lançar um texto tese, mas apenas por dizer. Adeus grandes crenças, adeus grandes sistemas filosóficos, adeus grandes partidos, adeus grandes amores. Alô solidão inexorável e repleta de salvações possíveis, mas jamais concretizadas. Pela manhã é bom dia, eu sei que tudo será como ontem e diferente de amanhã. A noite é adeus, morro pra tudo e todos com a esperança de renascer em um novo mundo. Por isso maldigo Buda e a reencarnação. Me irrita a possibilidade de renascer sendo eu mesmo.

(Andréia poderia estar reclamando por reclamar, estando ela no mesmo estado que João, o namorado)
- Você está bêbado.
- Não estaria se a gente tivesse comido alguma coisa. E tenho certeza que foram tiros.
- Seu cabelo desarrumou.
- Droga!


caminha sobre as águas o amor de doces causas, como o cansaço após a labuta de um dia acalorado, deseja o repouso como deseja a noite a luz da lua em prata repouso
- Eu acho um absurdo televisão ligada em restaurante. Como uma pessoa consegue aproveitar a comida com a novela chamando a atenção.
vertentes à vista descobertas, descende o homem de outro homem apenas. Se diz a lauta ciência ser o amplexo da morte a vida do chacal, veredas
- Eu gosto. É bacana assistir uma cena em que um dos personagens é cronista da vida carioca. Janete Clair tinha isso, inserir poesia em folhetim.
desdobradas em vias infinitas e largas, tua voz em mim
- Arte diluída no pastiche. Ninguém merece. Pede mais cerveja que hoje eu vou precisar.
feito o desfeito é preciso procurar
e encontrar a dor



(pena o autor, levado pela covardia, seguir a linha definida pelos personagens, e bem que ainda tenta definir algo seu, salpicando a narrativa de irrealidades possíveis)
Isadora torce o pescoço e olha através do vidro encharcado. As luzes dos faróis desmancham em rastros abstratos. Um cavalo passa correndo, sem cavaleiro.
- Ser bonita não resolve nada. Solidão é o único sentimento que perdura a vida toda, para todos. Precisa ser estúpido ao cubo pra não saber disso.
E de ombros encolhidos, esfrega as mãos antes de pedir que Andréia sirva o que resta na garrafa em seu copo.
tantas poucas verdades, de idades variadas, persistindo feito vermes eternos, encravados na sola de pés fatigados, anunciando a continuidade de
Andréia dá uma risada fascista e
- Homem é tudo igual. A gente devia ter nascido louva-a-deus. Seria ótimo comer o desgraçado depois dele ter me comido. Mastigar o cérebro bem devagar. Será que tem mais proteína no cérebro ou nos escrotos?
diz-se desacompanhada na amargura, tornando a sorrir um riso alentador, quase cristão, antes de apertar os dedos nas costas da amiga, em um massagear compreensivo e levemente dolorido.
- Ele está quarenta minutos atrasado.
sôfrega ilusória distração de si mesmo, a corda volúpia em nó na garganta
- Amiga, o Armando foi na casa da ex., mas fica tranqüila, não rola nada. Quando o amor seca e vira amizade, é mais fácil um matar o outro do que rolar sexo. Você sabe e eu sei. Não se preocupa. Qualquer coisa o João dá conta de nós duas.
Isadora coloca a palma da mão sobre a boca escondendo o aparelho ortodôntico no momento que ri, e toma um gole e mais dois.
- A gente não transou ainda. Hoje devia ser a primeira vez.
O garçom passa pela mesa e troca as garrafas vazias por cheias. Andréia bate a palma da mão na testa.
- Putz, então não tem explicação. Homem não se atrasa pra duas coisas: futebol e sexo. A não ser os gays. Esses não se atrasam pra nada.
Um grupo de quinze garotos passa correndo, na direção que foi o cavalo. Nus, balançam os pequenos escrotos feito pêndulos desencaixados do ponteiro solitário, segundo a segundo atrasado. No muro, do outro lado da rua, um vídeo-maker filma o que acontece no restaurante. Usa um chapéu tipo sombreiro.
até o concreto de duas cidades carcomer a vontade de se esvair, enfim
O Cd enrosca no aparelho e a música ambiente desaparece, criando uma aura de alivio, que não é maior devido à fantasmagoria de ter a televisão ligada e muda.
nada

(pobre autor, quão árdua é a tarefa de decidir o rumo de vidas risíveis: continuar como uma literatura realista, indo da descrição ao diálogo ou voltar a idéias original, realizar um conto de suspense. Houve tiros e sirenes, não houve? Quem sabe os dois, mais toques de fantasia capazes de aliviar a modorra de apenas refletir a realidade em espelho de palavras? O que não pode admitir é sua vulgar vida imiscuir-se totalmente à literatura que se pensa grandiosa)
João dá uma pirueta imitando Michael Jackson drogado e pára o garçom e pede
- uma porção de guiozas e amendoim temperado com algas e peixes secos.
e senta-se e ri engasgado. Sobre sua cabeça, a lâmpada emissora de luz intensa diminui a força, em espasmos inconseqüentes e destituídos de compaixão pelos olhos vermelhos daqueles que suportam ver o que transmuta à custa do álcool e da fuga da escuridão.
(um rococó sem maiores complicações, explica-se o autor em off. Algo para supor possível literalizar o banal)
- O que foi, palhação?, Andréia pergunta deixando que João encha seu copo. – Bebeu água da privada?
João engole um gole antes de passar o copo para a namorada. A saliva imiscui-se à espuma e por um instante parece a João que o levedo e o malte são mais seu corpo que o sangue e a urina a correr sobre seus ossos. E pensar o faz rir ainda mais.
- Mijei nas calças e esqueci de fechar o zíper na hora de sair do banheiro. Se não fosse o vento resfriar meu amigo, eu teria vindo com o passarinho voando livre e feliz.
Andréia encara Isadora, cujo decote deixa ver a pele arrepiada dos seios.

(poderá o autor, com a compreensão do nobre leitor, chegar direto ao ponto, sem enrolar e falar que a qualquer momento Armando adentrará o recinto com um olhar assustado, a blusa sob o braço, enrolada feito um pacote desfeito e amassado para ser jogado no lixo. A calça e a camisa de botão, encharcadas e muito amassadas, como se tivessem sido torcidas com força. Mas o autor sabe que não é o momento. Caso coloque o carro na frente dos bois, o suspense se perde. E mesmo estas palavras desenganar-se-iam de suas funções. Ninguém precisa saber que alguém, a pedido do autor, assassinou duas pessoas. Logo teremos tiros, sirenes, duas pessoas mortas, sendo uma delas uma criança)

(agora, um jogo de argumentações criado para angariar a simpatia daqueles que gostam de música e discussões interessantes, levadas por comparações idiotas, e chegando a uma triste conclusão)
A música retorna nas caixas de som presas nas paredes, próximas ao teto.
- Marina é muito mais bacana que Marisa Monte, diz Andréia. – Tudo bem que a Marisa Monte é super-produtora, mas a Marina é muito mais legal.
Isadora contemporiza.
- É, mas a Marisa é mais macho que a Marina. Se a Marisa fosse sapata comia todas e ainda saia dando porrada na Ângela Ro-Ro. Não ia posar pra Playboy feito patricinha de Copacabana.
Andréia mastiga amendoim e fala abrindo o mínimo possível os lábios.
- O que me dói é ouvir como a voz da Marina quebrou. E a do Milton Nascimento também. Se eles cantassem sem floreios, o timbre deles e a interpretação já davam conta.
Isadora cobre os olhos com as mãos.
- Milton cantando Certas coisas dá vontade de chorar.
Verificando até onde alcança a visibilidade do fundo do copo vazio, João deixa a boca de vidro tocar seu rosto.
- Marisa Monte é mais jovem que Marina.
- É, não tem como argumentar contra isso, brinda Andréia. – Vamos pedir mais cervejas antes que alguém ouça a gente falando de nossos ídolos da juventude e se dê conta da nossa idade.
- E, pra mim, a voz deles não quebrou. Foram os corações que ficaram vazios.

(muito poder ser dito e pensado, muito poderia ser mostrado do vazio que faz sombra ao destino heróico dos personagens, mas é chegado o momento de inserir um novo personagem, cujo nome já foi dito)
A forte e fria corrente de ar entrar. Junto acompanham gotas de chuvas, atravessadas, e folhas caídas das muitas árvores plantadas na calçada. Um pequeno redemoinho se forma na área de recepção.
- Olha ele aí. Cara, como foi que você se molhou assim?, João interrompe o passo e vacila antes de abraçar o amigo. – Ah, dane-se. Vai servir pra disfarçar o xixi na calça.
Antes de beijar Isadora, Armando coloca a blusa no chão, sob a cadeira. Ao agachar, o faz com cuidado, deixando seu corpo imenso entre a ação e os olhos dos amigos.
- Desculpa o atraso, gente. O pneu furou.
Andréia pede para João acompanhar Armando até o banheiro.
- Homem não é igual mulher, amor, a gente consegue fazer as coisas sozinhos e, você sabe bem, eu já estou indo antes que você fique mais brava comigo.
Com um saltito de Fred Astaire tomado pela lepra, João alcança Armando e o abraça.
- Vai brincando que você nem sabe o que te espera, diz Andréia para si mesma. – Eu já larguei dois casamentos e largar você não vai ter nada demais.
O garçom traz mais um copo e aproveita para encher os vazios e trocar as garrafas. Para Isadora, cansaço da espera transformou a alegria em torpor.
- Muito bem. Chegou o seu príncipe encantado. Inteiro. Cabeça, muito tronco e membro. Principalmente membro. “A noite vai ser boa...”
- Sabe que eu não agüento mais me sentir só. Eu estava pensando em me matar se ele não aparecesse.
Andréia coloca o copo na mão da amiga e nota o anel de brilhantes. Recolhe depressa a própria mão, cujo dedo indicador está enfeitada com um grosso círculo de osso, presente de João nos primeiros dias da paixão.
- Você está de TPM?
- Eu não gosto de ser assim, tão Amélia.
Com as mãos no colo, Andréia tira o pobre anel e o guarda na bolsa.
- Você podia começar deixando onde está essa blusa imunda.
- Não está imunda. Está molhada, e só. Se estivesse suja eu nem tocava. Você sabe que eu odeio sujeira.

(aqui o autor levanta e vai ao banheiro e volta com uma idéia que pode melhorar o que se passa. Mesmo entre amigos existe o jogo do poder, a inveja, os sentimentos mesquinhos)
Ao dobrar as pernas, diferente dos cabelos, a barra da saia preta de Isadora mal toca o chão. A falta de estrias em suas pernas parece efeitos de luz, mas não é, e Andréia sabe, e ri irônica e passa a língua sobre os lábios, tirando a espuma da cerveja e voltando a falar com firme certeza.
- Bulimia é uma merda.
descolorações erradicadas do informe dia, a ir-se tonto de si mesmo, ofuscado por
Isadora esfrega as unhas vermelhas e alivia a coceira na altura do cóccix.
- Ainda bem que existe cerveja, e cerveja alimenta e desinfeta.
corpos impassíveis no campo de asfalto, semeado de rodas e amargor
Isadora pega a blusa e, com cuidado para não derrubar qualquer objeto que eventualmente esteja embrulhado, puxa a manga e estica o tecido pondo à mostra a mancha vermelha, não tão diluída que não dê para discernir ser sangue.
- Ai, que nojo!
Larga a blusa, quase caindo sentada.
- Ele deve ter se cortado com o macaco. Coisa de homem urbano que não sabe fazer força.
De forma atrapalhada, Isadora chuta a blusa para baixo da cadeira e levanta-se. Com vários guardanapos, limpa as mãos e a boca. Quase no mesmo momento, Armando sai do banheiro. Junto à mesa, abre os braços e dá uma volta, mostrando a roupa seca, que deixa a barriga exposta.
- O garçom me arranjou esta roupa. É meio apertada mas serve.

(as pistas foram apresentadas, mas nem todas os detalhes do acontecido são sabidos. Algo se deu, e algo se dará. Os componentes do mistério são promissores. O autor mostra-se animado, mas sabe que muito ainda tem pela frente. Se não fosse a dor de cabeça)
O garçom coloca mais um pote de amendoim e guiozas na frente de João.
- Tem gente que come para viver, eu vivo pra comer. E pra ajudar, dá-lhe cerveja. Meu sonho é beber até o último dia e, quando desenterrarem meu corpo pra exumação, que achem um João mumificado.
Armando se acomoda na cadeira. Isadora puxa sua cadeira para o lado.
- Você está brava comigo?
- Claro que não.
- Então se aconchega no papaizão.
Os seios incrementados com 300 mls de silicone empurram as mamas de Armando para cima, ao mesmo tempo que se apóiam na barriga arredondada e flácida. O nariz, afinado a bisturi e marteladas cirúrgicas, mostra o dorso perfeitamente alinhado com a cavidade que divide os lábios grossos em lado direito e esquerdo.
- Me dá um beijo.
- Depois.
Armando tira o braço de sobre Isadora e ajeita-se na cadeira, de assento pequeno demais para suas nádegas. Isadora segura o copo com as duas mãos e esboça um riso de desculpas.
- Como foi a conversa?, Isadora pergunta baixinho.
- Tudo bem. A Joana entendeu que não posso dar uma pensão maior. Ainda mais que eu deixo tudo pra ela e pro Pedro e só fico com o Gol. Preciso dele pra trabalhar.
- Por que sua blusa tem sangue?, Andréia fala, jogando-se no encosto da cadeira. – A Isadora viu o sangue e se assustou.
Um quase sorriso toma o rosto de Armando
- É por isso? Ufa. Eu não queria falar. Uma droga. Atropelei um cachorro. Por isso dei no meio-fio e estourei o pneu.
antes de fracassar e tornar-se uma expressão de comiseração saudosa.
Andréia procura a reação de Isadora.

- Quando fui ver, ainda estava vivo. Até coloquei ele no carro, pra levar no veterinário. Mas antes de terminar de trocar o pneu, ele morreu.
Andréia bebe o que resta em seu copo e, com os dedos cruzados, apóia os seios na mesa e diz, apertando a testa.
- Animais têm alma. Buda dizia.
João discorda rindo e levemente enrubescido.
- Eu não acredito em Buda, mas acredito que animais têm alma. Por isso, antes de comer carne, eu me certifico que o bicho está morto pra não mastigar nenhum espírito distraído.
O garçom novamente troca as garrafas vazias por cheias e abre espaço para quatro doses de saquê e serve fartamente cada um dos recipientes quadrados e se afasta para não atrapalhar o brinde.
- A todas as almas perdidas em noites de chuva!, João ergue o brinde.
O garçom anota os pedidos e aumenta o volume da televisão.

(tendo mais tempo, o autor imagina que poderia transformar este jogo narrativo, guiado por diálogos, em uma peça longa. Talvez uma novela de suspense e comportamento de balzaquianos atormentados pela própria insipidez. Mas como não há espaço, e a dor de cabeça acentua-se, segue torcendo para que algum personagem se insurja e dê rumo à história sem história)
A conversa amaina. O tempo passa. A comida chega: sushi e sashimi, peixe grelhado e arroz branco e conservas de legumes. Andréia joga sua mão sobre a mão de Isadora, referendando o pedido de paz.
- Claro que o Joey Ramone era lindo. Não tinha a beleza grega clássica, mas tinha a lindeza da modernidade. Cantor de punk rock, vestido como um garotão mal-encarado dos anos 50, e com aquele jeitão meio viado indeciso. Um charme.
João levanta-se e rebola e faz caras e bocas e
- Eu prefiro o David Bowie e o Ney Matogrosso do tempo dos Secos e Molhados. Gosto de homem bicha.
volta a sentar-se ao perceber que o dono do restaurante o observa.
Armando bate palmas.
- Meu problema é que eu sou uma beleza clássica. Uma beleza búdica!
“Interrompemos a programação para informe extraordinário. No bairro Rebouças, mulher e o filho de quatro anos foram assassinados. A polícia se encontra no local, assim como nossos repórteres”.
Calam-se as risadas.

(as revelações indicam o caminho e o suspeito reage; ou seria apenas uma argumentação normal a um homem cansado de conversar sobre relacionamentos falidos?)
- Como alguém pode ter coragem de matar a mulher e o filho. Ainda mais um menino de quatro anos. É muita canalhice.
Sem parar de mexer a mistura de shoyu e raiz forte,Armando ouve Andréia e
- A gente não sabe o que aconteceu. Não dá pra julgar. Pode ter sido um acidente.
bebe o que havia sobrado do saquê.
Andréia serve-se de uma fatia de salmão e mastiga lentamente, saboreando a carne de farta gordura.
- Acidente? Como alguém mata mão e filhos em um acidente? Você ouviu, foi assassinato.
- Eu concordo, Isadora diz empurrando seu saquê para João. – Tem coisa que não dá pra entender como acidente.
- Tudo pode acontecer. Ainda mais merdas desse tipo. Tem gente demais no mundo, vivendo situações estúpidas demais. Tudo pode acontecer. Com qualquer um de nós.
Após encher dois copos, João vira um de cada vez e torna a enchê-los e pede que Armando dê sua versão do acontecido. Mas não ouve. Um grupo de elefantes, passando em procissão pela rua, chama sua atenção. O faquir flutuando entre as orelhas do líder do grupo parece algo normal dentro do contexto.
- A mulher provoca o homem até que ele se irrita tanto que dá um tapa na histérica. Não muito forte, mas o bastante para que ela caia e bata a cabeça na quina da mesa e, lei de Murphy, apaga para todo o sempre virando uma carcaça sem espírito para ser mordido pelos vermes. Supondo que seres humanos tenham alma, é claro.
- Como nos filmes!, João aponta para Armando e bate palmas e ergue sozinho um brinde.
- E daí, Isadora pergunta, disfarçando a preocupação, tentando aproximar-se de Armando, sem que ele retribua os carinhos. – O que acontece depois?
- Assustado, o homem sai de casa e, na pressa, não vê que o filho pequeno corre atrás, transtornado. É uma daquelas situações patéticas que parecem mais naturais no cinema. O homem entra no carro e, ao manobrar, acaba atropelando a criança. Chuva, desespero, futuro comprometido. Tudo passa na cabeça do homem enquanto tenta inutilmente ressuscitar o filho.
João limpa o lábio superior. Andréia pega mais uma fatia de salmão.
- Você acha que o pai é o assassino?
- Eu não disse isso.
- Disse sim, João afirma, e, surpreendendo a todos, repete: “tenta inutilmente ressuscitar o filho”.

(a dor de cabeça torna-se insuportável e os personagens tornam-se nublados)
Armando passa os olhos pela parede dos fundos do restaurante e pára em um quadro de dois por dois metros, com uma selvagem caligrafia de ideograma japonês.
- Pode ser que eu tenha dito. E não estaria errado. É comum acontecer de pais matarem suas famílias. E também os amigos curiosos.
Risadas naturais e nervosas misturas ao som da televisão.
“Apesar da chuva torrencial, a polícia continua procurando pistas do acontecido. Até o momento a única certeza que se tem é que a mulher morreu de concussão cerebral, resultado de uma pancada com objeto contundente, e o filho pequeno morreu na garagem, atropelado no momento da fuga”.
Armando enche a cumbuca de arroz e conservas, disfarçando a atenção dada pelo grupo.
João levanta, solene, apoiando a mão direita na mesa, quase derrubando os pratos e copos.
- A vida imita a arte! Mas esperemos que não neste caso pois os amigos somos nós.
- Preciso ir ao banheiro. Andréia, você vem comigo?

(chegando ao final, pelo menos do espaço físico a que se comprometeu encher de palavras, o autor dá graças e teme que não consiga concluir o texto. Por esse motivo, e unicamente por esse motivo, pergunta-se: Armando matou a mulher e o filho? João é um bêbado chato? Andréia é uma pentelha dona da verdade? Isadora é uma covarde narcisista? Pensem, por favor, e ajudem-no a respondê-las)
Com toalhas de papel, Andréia limpa o espelho e ajeita com o lado do dedo indicador o borrado preto do lápis delineador.
- Eu vou me separar do João. Não dá pra viver com um bêbado como ele. Cara completamente sem noção.
Isadora ergue a saia e dá a descarga e se dirige a pia livre.
- Queria ter sua coragem. Sempre que penso em ficar sozinho lembro de minha mãe. De como ela sofreu e fez a gente sofrer junto.
- Por que o Armando se separou da mulher?
- Não sei.
- Você acha que ele matou a mulher e o filho?
- Claro que não.
- Você vai transar com ele, hoje?
- Não sei. Talvez. Estou tão cansada.

(Insuportável pressão entre as têmporas obriga o autor a tomar uma decisão drástica)
A porta do banheiro fecha suavemente, graças ao braço mecânico que a suporta.
- Cadê eles?
O garçom responde a Isadora que os homens que acompanhavam as senhoras foram até o banheiro pois um deles não estava bem.
“Acabam de revelar o nome da vítima. Joana Bittencourt Razza. 32 anos, divorciada. Segundo testemunhas, pouco antes de um catador de papel ver o menino caído na garagem, um automóvel gol, azul, foi visto saindo em disparada.”
(o autor vai dormir enquanto a polícia estaciona na frente do restaurante)

segunda-feira, maio 22, 2006

de claudel para rodin:

“Il y a quelque chose d’absent qui me tourmente”